quinta-feira, 10 de agosto de 2017

DESPINDO A ALMA

Nunca tive problemas com a minha aparência durante a infância, posso dizer que a minha vida naquela época era definitivamente de uma criança, com uma vida leve, divertida e nenhuma preocupação além das tarefas de casa dadas pelas professoras. Em casa eu me acostumei a receber elogios referentes ao que aprendia com os estudos e por minhas capacidades esportivas, ouvia ótimos comentários a respeito da minha aparência mas meus pais sempre procuraram valorizar os aspectos intelectuais e culturais. Por muitos anos eu pouco me preocupei com o uniforme da escola pois desde que fosse confortável e adequado para jogar bola valia a pena ser vestido, e assim funcionava com meus cabelos que ficavam quase sempre presos para não cair no rosto durante o jogo e os acessórios tinham que ser mínimos para que não pudesse machucar se recebesse uma bolada. Passei por essa fase imune às opiniões alheias.

Tudo muda a partir do momento em que o outro passa a ser mais importante que você. Digo isso porque em nenhum momento eu passei a me achar feia efetivamente, mas a partir do momento em que percebi que as pessoas ao meu redor valorizavam de forma unânime determinados atributos físicos, automaticamente passei a tentar identificar essas características em mim e foi através dessas comparações que por tantas vezes me frustrei e desejei ser diferente do que sou. O resultado de passar a amar tanto o que enxergava nos outros é que faltava amor para usar comigo e isso trouxe problemas importantes para a minha autoestima durante a adolescência, cuja fase fisiologicamente já produz diversas mudanças impactantes no nosso corpo e pode alterar também a forma como pensamos e agimos. Quantas vezes desejei que meu corpo fosse outro e que meu cabelo fosse diferente, não importava quantas vezes ouvisse que eu era linda ou coisa parecida, em momento algum eu parava para me observar com os mesmos olhos daquela criança inocente e ao mesmo tempo sábia que um dia eu já tinha sido, e me permitia enxergar aquele conjunto orgânico fabuloso e milimetricamente planejado por Deus (ou qualquer outra força que você acredite). A busca incessante pela aprovação dos outros pode ser muito cruel e cansativa, além de escravizar silenciosamente os nossos atos.

A autoestima defasada pode aflorar a vaidade nas pessoas, uma característica inerente aos seres humanos mas que nem sempre é interpretada corretamente. Eu, particularmente sempre acreditei que ser vaidosa era algo positivo pelo fato de remeter a ideia de cuidado com o corpo, bem como realçar a nossa beleza ajudando até na nossa auto estima, no entanto durante essa minha jornada pelo autoconhecimento descobri que estava errada. Semanticamente, a vaidade é uma qualidade de algo vazio firmada sobre a aparência ilusória, ou seja, quando valorizamos algum atributo nosso, seja físico ou intelectual e que não necessariamente existe, e fundamentamos todo esse valor no desejo de que essas qualidades sejam reconhecidas pelos outros. Dessa forma, quando tornou-se muito difícil o reconhecimento genuíno de algo bonito ou valioso em mim e minha auto estima chegou ao chão, a vaidade ocupou esse espaço, então eu passei a me vestir e me maquiar de acordo com o que eu achava que os outros iriam aprovar e não necessariamente da maneira que eu me sentia a vontade.
A influência que os outros exercem sobre nossas atitudes só acontece porque permitimos, o julgamento dos outros nada tem a ver com o que nós realmente somos, na verdade define como aquelas pessoas pensam e agem, simples assim, mas a grande questão é a importância que damos a isso.

No sentido de restauração da auto estima e valorização pessoal, o diagnóstico de câncer veio a calhar. Sei que essa reflexão pode parecer horrível e de muito mal gosto já que essa doença definitivamente não tem nada de bom, mas a realidade é que foi através dessa fase terrível que voltei a me aceitar exatamente como sou e admirar minhas qualidades. O efeito físico do tratamento de quimioterapia desconstruiu a minha imagem,  perdi tudo aquilo que alimentava minha vaidade e todos aqueles atributos que eu acreditava que fossem fundamentais para que os outros me admirassem, se desfizeram. A partir do momento em que minha alma foi despida de todo aquele invólucro que eu insisti em valorizar por toda a vida, passei a enxergar quem eu era verdadeiramente e por incrível que pareça me senti linda e segura nessa fase.

Engana-se quem acha que é preciso ser vaidosa para ter autoestima, quando temos a certeza do que somos e nos amamos exatamente assim, não precisamos mostrar para ninguém, a gente se basta.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Ainda bem que vida não volta ao normal


Há um ano atrás eu recebia a notícia que marcou permanentemente a minha alma! Sim, o câncer produz  marcas que vão muito além das diversas cicatrizes e das mutilações no corpo, porque ele nos invade por completo e afeta as mais íntimas emoções que possuímos, atinge o âmago da nossa essência e modifica de forma definitiva a visão que temos da vida e sobretudo de nós mesmos.

Depois de sentir o corpo inteiro gelar e tremer ao receber o diagnóstico, e que pensei: agora acabou para mim de uma vez por todas...não tem como não se transformar. Depois de sentar milhares de vezes diante de incontáveis médicos, que despejaram sobre mim uma enxurrada de informações complexas de um mundo completamente desconhecido e temido, sobre riscos, chances de cura, chances de metástase, tratamentos e efeitos colaterais...não tem como não se transformar. Depois de conseguir reunir todos os pedacinhos do meu coração partido sentindo que podia vencer qualquer batalha, e veio aquele líquido vermelho que entrou queimando as minhas veias, me levando do céu ao inferno em questão de horas, atropelando meu corpo e matando todo o tipo de célula dele, não só as células cancerígenas mas também um pouquinho daquelas cheia de vida que carreguei por anos...ah, não tem como não se transformar.

O câncer nos força a despir a maneira como enxergamos o mundo, nos obrigando a encarar as pessoas, as situações e principalmente a nós mesmos, sem nenhum tipo de filtro, sem pudor, sem vergonha e sem preconceito, pois é só dessa maneira que podemos seguir em frente e lutar com todas as forças que essa doença demanda. Depois de olhar meu rosto inúmeras vezes no espelho, completamente modificado, marcado e sem reconhecer direito a imagem que via, enfim consegui enxergar muito além daquilo que ele refletia, olhei para mim mesma de uma maneira tão profunda como nunca havia feito antes e percebi que estava marcada para sempre, depois de me enxergar daquele jeito minha vida nunca mais seria a mesma.

Por muito tempo eu só consegui olhar, refletir e questionar a minha vida antes do câncer e durante o enfrentamento da doença, para mim foi muito difícil olhar para frente e retomar o caminho de antes que havia sido interrompido, demorei a entender que eu não precisava e nem queria mais levar a vida da mesma forma. Foi necessário muito esforço e muita entrega para que eu me permitisse começar do zero, para que eu redescobrisse gostos, desejos, sonhos e sabores sem cobranças internas e para que eu assumisse novos planos e metas, compreendendo a magia da vida não voltar ao normal, graças a Deus!

quarta-feira, 5 de julho de 2017

SEGUINDO EM FRENTE

Há um ano atrás eu estava vivendo uma semana complicada e aguardada com muita ansiedade e expectativa, havia me submetido a uma biópsia dolorida que poderia mudar a minha vida, o resultado do exame estaria disponível numa quinta feira, dia 07/07/2016 e o desconforto que sentia em consequência do exame atrapalhava minha rotina, mas minha vida tinha que seguir em frente. Vinha de um final de semana de plantão e tive uma semana muito intensa no hospital, foi necessário muito esforço para reunir todo o meu conhecimento e assim executar as tarefas da melhor forma, porque embora estivesse fisicamente presente, minha cabeça vagava em direção a um mundo desconhecido e sombrio, só que minha vida tinha que seguir em frente. Eu estava emocionalmente exausta, psicologicamente debilitada e minha capacidade de pensar positivamente encontrava-se inibida, precisava conviver e me relacionar com as pessoas, precisava me portar diante de superiores, colegas de trabalho e dos acompanhantes dos pacientes no entanto só conseguia apresentar uma carcaça, porque minha vida tinha que seguir em frente.

Apesar dessa realidade anteceder o fatídico diagnóstico, ela representa muito como era a minha vida de uma maneira geral antes do câncer, desde os sentimentos e emoções exacerbados e reações sem controle até o automatismo com que eu vivia os dias sempre aguardando os próximos, seja o próximo final de semana, a próxima folga, o quinto dia útil ou o final do mês. Sinceramente não acredito que estava insatisfeita e nem de longe infeliz, mas com toda a certeza eu sei que tinha ligado o "piloto automático" da minha vida há algum tempo e por mais que seja difícil assumir, vejo que provavelmente estava desperdiçando a minha existência com coisas pequenas e irrelevantes, desperdiçando a vida do tempo presente por aguardar o tempo futuro para viver.

A grande questão é que eu não pensava sobre a possibilidade do meu tempo ser curto, mesmo vivenciando constantemente os óbitos de pacientes no hospital, mesmo lidando com bebês e crianças que deixavam esse mundo tão cedo, ainda assim eu pensava que se eu fizesse tudo "direito", tanto com a saúde do corpo e da mente, como ética e moralmente, era certo que meu tempo seria longo... mal sabia. Não estou dizendo que eu acho que vou morrer porque tive câncer, é que precisei ter câncer para achar que poderia morrer, e também não acho que posso morrer só de câncer, hoje tenho a certeza que a morte não precisa de desculpas, justificativas e explicações, não é necessário ter idade, doença ou falta de cuidado, quando chega o momento de morrer, simplesmente adeus, acontece sem consentimento e sem aviso. Precisei compreender a finitude da nossa existência para enxergar com clareza como eu estava deixando a vida passar diante dos meus olhos e embora essa descoberta tenha sido fundamental para o meu processo de autoconhecimento, foi muito difícil encarar que eu era responsável por tudo aquilo que eu deixei de fazer.

Resgatando tudo o que vivi até 07/07/2016 posso concluir que o saldo no dia de hoje é positivo, pois diante de tantos conflitos internos e externos que tive nesse último ano eu consegui VIVER cada dia, tanto o bom quanto o ruim, provei de todas as sensações que me foram impostas, sofri em alguns momentos e me fortifiquei em muitos outros, porque enfim são essas coisas que tem que acontecer realmente, afinal minha vida seguiu em frente.

terça-feira, 27 de junho de 2017

EU ACEITO!

21/06/2017 - Pré cirurgia

Depois de tudo que passei no último ano, hoje eu cheguei à conclusão que não existe uma maneira correta de agir e reagir às situações difíceis, não há nenhuma "receita de bolo" que faça você assimilar melhor as más notícias e nem lidar bem com elas. Lembro-me de dizer com todas as letras no ano passado, que se estivesse no lugar de uma amiga que estava com câncer, eu ficaria desesperada e não seria tão forte como ela. Ledo engano, só descobrimos a nossa força quando estamos verdadeiramente passando por aquilo, isso porque temos a infeliz tendência de subestimarmos nossas capacidades e superestimarmos nossos defeitos, com receio de parecermos presunçosos e arrogantes. O grande problema disso é que vivemos a maior parte das nossas vidas idealizando um personagem que une tudo aquilo que queremos ser a tudo aquilo que achamos que somos, e essa visão de nós mesmos é muito rasa. Não é fácil olhar para dentro sem nenhum tipo de filtro, sem pudor, preconceito e sobretudo sem julgamentos, mas quando conseguimos atingir esse nível de intimidade, em que reconhecemos verdadeiramente tudo que temos de bom e de ruim, passamos a otimizar nossas reações e consequentemente passamos a lidar melhor com situações difíceis.

Hoje, por reconhecer o peso de toda a bagagem que carrego pelos caminhos da vida, lido com algumas situações de maneira muito diferente de antes, e não é porque estou mais calejada mas sim por aceitar que coisas boas ou ruins aconteçam comigo. E aí que está a palavra mágica: aceitar. Quando entendi que podia até fazer tudo "certo" e ainda assim coisas ruins aconteciam, que podia planejar um futuro incrível e que nem sempre ele se concretizaria como eu imaginava, aí entendi que não tinha o controle total sobre a minha vida e diante das situações adversas só me restava aceitar. Pode parecer óbvio que nós não temos esse controle sobre tudo, mas não para mim que vivia sempre planejando os próximos passos. Quando parei de sofrer, recusar, questionar, remoer e um monte de outras coisas que a gente sempre faz para tentar entender o porquê determinadas situações acontecem, descobri o poder do "aceitar". E veja bem, não estou dizendo que sou passiva, daquelas que aceita qualquer coisa numa boa e sem sentir nada, eu só não luto contra algumas situações, eu sofro mas não me desespero. O desespero diante de algo ruim não faz o peso a ser carregado diminuir e muito menos encurta a distância do caminho que temos que percorrer, o desespero é puro desperdício de energia.

Eu resolvi aceitar o que a vida tem para me oferecer, vivo todas as situações que me são impostas fazendo tudo aquilo que está ao meu alcance para que cada instante seja proveitoso de alguma forma.
Sim, eu aceito.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

TUDO PODE MUDAR

Parque Ibirapuera (16/06/2016) - Arquivo pessoal
Depois de me curar do câncer senti uma certa dificuldade em me adaptar a nova vida que tinha acabado de ganhar, pois a sensação  de poder "começar do zero" e aproveitar cada segundo pulsava no meu corpo, mas ao mesmo tempo eu não sabia por onde começar a viver. Todas as noites eu sentia a necessidade de reavaliar as minhas escolhas e ter a certeza de que eu estava 100% feliz, porque não acredito que tenho que me contentar com 99,9% de felicidade quando posso ser completamente feliz, não depois de tudo que passei. Quem inventou essa história de que "não se pode ter tudo"? Para mim, a felicidade plena pode ser atingida quando damos o peso correto para cada prioridade da nossa vida, algo não muito simples de se fazer mas que pode ser possível, a partir do momento em que você consegue olhar pra si e identificar o que você faz e o que não faz, para que sua existência não tenha sido em vão. A felicidade é isso, o resto é desejo físico e conquista material ou afetiva que colocamos como imposição para atingirmos esse estado.

Essas ideias, teorias, conclusões e memórias faziam a minha mente, que desde sempre era hiperfuncionante, beirar quase um colapso. Então para organizar meus objetivos e metas de vida, escoava esse grande volume de pensamentos e planos em textos particulares, já que ideia de escrever um blog não me agradava no início pois achava que esse meio de comunicação era obsoleto. Escrevia a mão em cadernos - adoro esse tipo de escrita - ou no próprio Word, no entanto um amigo me chamou a atenção para algo muito óbvio: textos escritos e não lidos são um desperdício de imaginação e fogem completamente do princípio fundamental da existência de uma palavra, de ser lida ou ouvida e sobretudo interpretada/assimilada. Os meus grandes desafios eram, ultrapassar o grande pré conceito que formei sobre a minha própria capacidade de criação, e passar a acreditar que a minha história poderia ser interessante ao público, só que não precisei me esforçar muito para deixar de me subestimar, o destino se encarregou de fazer essa transformação em mim de forma bem rápida.

Dia 16/06/2017, uma linda sexta-feira de um feriado prolongado, praticamente o aniversário de um ano - 17/06/2016 - do dia em que fui ao Mastologista para investigar o nódulo recém descoberto, resolvi correr no parque Ibirapuera, aqui em São Paulo, apesar de não ser o local que costumo treinar normalmente. (Ainda não tenho nenhuma teoria definida sobre as coincidências que aconteceram na minha vida, mas vou escrever um texto para contar todas elas e o que sinto quando acontecem). No meio da corrida eu comecei a me sentir mal e não era nada físico, era algo que eu referi como "um vazio" e "uma angústia", e decidi sentar à beira do lago para entender aquelas sensações. Esse é um costume que adquiri depois do câncer, sempre que sinto algo que não posso explicar, eu paro tudo que estou fazendo para olhar lá dentro do meu coração e decifrar o motivo e a solução. Fiquei quieta, escutando uma linda música de fundo que orquestrava suavemente os últimos acontecimentos da minha vida, como se fosse uma cena de filme. Algumas lágrimas transbordaram sem nenhuma causa aparente, vazaram dos meus olhos como se fosse o único fluxo que pudessem seguir e eu aceitei. Meu marido perguntou se eu estava triste e sinceramente eu disse que não - nem todos podem compreender que o choro não é sinônimo de algo ruim ou doloroso - na verdade eu estava reflexiva. Ficamos ali juntos de mãos dadas, apreciando cada segundo daquele momento até a mente esvaziar, e então decidimos voltar para casa.

Acho que não vou conseguir esquecer nessa vida o medo que senti quando olhei para o lado e vi aquele carro vindo rapidamente na nossa direção e nem o barulho estrondoso do carro batendo no nosso. Eu só consegui pensar: Não acredito que depois de tudo isso, é assim que tudo acaba! Fiquei esperando para ver como era o momento da morte mas ele não chegava, e quando o carro capotou eu segurei minha cabeça pensando que poderia evitar alguma lesão na medula se eu não morresse, e aguardei. Quando o carro parou e percebi que ficaria viva, comecei a gritar perguntando se meu marido estava vivo e a sensação mais gratificante do mundo envolveu o meu coração, quando ele respondeu que estava tudo bem - agora sim sentia alívio por ter sobrevivido. Depois do choque e enquanto precisava ficar imóvel esperando o serviço de Emergência, fiquei ali deitada no capô - o carro parou de rodas para cima - chorando e pensando, até concluir que depois de tudo isso é para eu estar viva, que nesse momento o meu lugar é nesse mundo e ponto.

E por que estou contando essa história?
Porque depois de pensar em dois momentos que eu poderia morrer e que todas as palavras que escrevi poderiam morrer comigo, sem ao menos terem sido lidas por uma pessoa sequer, eu resolvi criar esse blog e compartilhar minha jornada a quem se interessar, com direito a todos os anseios, angústias, dúvidas, medos e erros que permeiam a vida real.

Sejam bem vindos a minha vida de paciente oncológica, que busca transcender o que chamam de sobrevida para uma vida plena, intensa e feliz.